Violência e Barbárie na Era da Globalização
Zilda Márcia Grícoli Iokoi
Universidade de São Paulo
DEU NA TELEVISÃO[1]
Em edição extraordinária, o plantão de notícias do Jornal da Globo informou na quarta-feira, 17 de abril de 1996, que uma rajada de metralhadora disparada por um policial militar, seguido por mais 180 colegas, atingiu um grupo de sem-terras que ocupavam a Rodovia PA-275, em Eldorado de Carajás, no Sul do Pará. Graças à presença de um cinegrafista do SBT e de uma repórter da Globo, o massacre foi filmado durante 15 minutos. A gravação mostrou homens, mulheres e crianças sendo enfrentados à bala. A cifra dos massacres, que já era alta, cresceu mais um dígito. Trinta e três em vinte anos, sendo o número de mortos maior do que três centenas.
Ao longo de toda a madrugada, inúmeras pessoas se deslocaram para Marabá, a cidade com aeroporto mais próxima, para acompanhar os acontecimentos, checar as informações e reconstituir o quadro histórico em que o evento se dera. Anistia Internacional, Comissão de Justiça e Paz, Ministério Público, CNBB, Partido dos Trabalhadores, Central Única dos Trabalhadores, Nelson Jobim, Ministro da Justiça, Comissão de Parlamentares da Câmara e do senado e o próprio chefe da Casa Militar da Presidência da República dirigiram-se ao local. A imprensa internacional repetiu as cenas e o noticiário atingiu os quatro cantos do planeta, sendo traduzido em 61 línguas.
Os episódios são parte de uma longa história. Iniciaremos pelas circunstâncias mais próximas, que devem ser expostas em primeiro plano. No início de fevereiro do mesmo ano, um grupo de aproximadamente três mil sem-terras ocupou a Fazenda Macaxeira em Curionópolis, para pressionar o INCRA a promover a demarcação dos lotes para o assentamento dos cadastrados. Entretanto, depois de dois meses, nada fora feito. O movimento decidiu então realizar uma caminhada a pé para Marabá, com o objetivo de acelerar a burocracia do instituto.
Por seu turno, o sindicato dos proprietários, juntamente com as forças sob seu comando, havia se manifestado abertamente. Não aceitariam os sem-terra na região, uma vez que estes “atrapalhariam” seus negócios, podendo invadir suas propriedades. Na Segunda-feira, dia 15, o governo do Pará, Almir Gabriel, do PSDB, reunido com Paulo Sette Câmara e com o Comandante geral da PM, Fabiano Lopes, montaram a estratégia para desocupação da rodovia, deliberando que nenhuma concessão seria feita. O assentamento do grupo estaria condicionado ao restabelecimento da ordem e todos os meios seriam utilizados para atingir esses objetivos. No dia 16, o comandante da PM de Marabá, Mário Colares Pantoja, foi informado da decisão do governador e decidiu adiar o seu cumprimento. Entretanto, recebeu um telefonema do governador, advertindo-o, aos berros, das conseqüências deste ato. O policial reuniu a tropa de Marabá, com 80 homens, e de Paraupebas, com 100 homens, iniciando o cerco aos acampados.
Estes, informados da proibição da caminhada, bloquearam a estrada e exigiram a doação de dez toneladas de alimentos e ônibus para transportá-los a Belém do Pará, onde pretendiam encontrar o governador. Aparentemente tudo estava equacionado. Todavia, quando esperavam as mercadorias e os transportes, perceberam que estavam sendo cercados num campo de guerra.
Em meio a bombas de efeito moral, os sem-terra avançaram com pedras, paus e foices sobre a coluna de Pantoja. Os militares responderam acionando as metralhadoras, fuzis e outras armas. Segundo relato do médico legista, alguns trabalhadores foram feridos com armas de lâminas afiadas, supondo-se o uso de sabres e baionetas. Vários acampados foram executados, outros, espancados antes de morrer. Crânios estourados e nucas atingidas indicam que após o massacre na estrada, quando os militares obrigaram os sem-terra a se embrenharem no mato, muitos foram perseguidos e mortos. Um dos participantes, homem com mais de sessenta anos, fingiu-se de morto para sobreviver e contou que os soldados atiravam em quem gemia e jogavam corpos uns sobre os outros em caminhões.
No acampamento, até a sexta-feira, contavam-se mais de vinte crianças e o mesmo número de adultos desaparecidos. Dona Maria afirma ter visto mulheres e crianças mortas serem colocadas na caçamba da caminhonete roxa de propriedade da Polícia Militar de Marabá. Para que o legista do ministério da Justiça pudesse examinar os corpos, foi preciso a interferência de Paulo Sérgio Pinheiro, diretor do Núcleo de Estudos da Violência da USP, membro da Comissão de Justiça e Paz e representante do Brasil na mesma comissão da ONU, e de um telefonema do chefe de gabinete do secretário José Gregori.
A certeza da impunidade fez com que os procedimentos de investigação corressem o risco de conter irregularidade e de perder seu poder legal pelo desrespeito às normas de investigação. Inúmeras vezes, a justiça não pode agir e indiciar os criminosos devido aos procedimentos policiais na verificação do crime. Naquele momento, o próprio Presidente Fernando Henrique afirmou: “Tenho a convicção que desta vez serão julgados. Mesmo”.[2]
Foram liberados 19 cadáveres de sem-terra, levados a Eldorado de Carajás para enterro. A multidão, em silêncio, entrava na igreja para reconhecimento dos corpos. Presença e ausência num ritual triste onde sequer os cânticos realizavam o rito de passagem. Vidas e sonhos perdidos e a ausência do chão de terra para o corpo vivo. Apenas o palmo de cova que o latifúndio reserva ao trabalhador.
CORUMBIARA NÃO BASTOU!
Os acontecimentos ocorridos no Pará repetiram os de setembro de 1995, quando, às quatro horas da manhã do dia nove, 187 policiais militares iniciaram uma caminhada de um quilômetro em direção à fazenda Santa Elina, levando revólveres, metralhadoras e escopetas. Dividiram-se em três pelotões e, rastejando pela mata, cercaram 600 famílias de sem-terra de Corumbiara em Rondônia. Os cinqüenta policiais da Companhia de Operações Especiais, tropa de choque do Estado, usavam coletes à prova de bala e capuzes pretos. Com o barulho, três lavradores encarregados de vigiar os acessos à área ocupada soltaram rojões, senha combinada para avisar os acampados. Ainda estava escuro e a correria começou. Os ocupantes da fazenda foram até a barraca de lona onde ficavam as armas. Eram 28 espingardas, dois revólveres calibre 22, três garruchas, duas carabinas, cartuchos e bombas artesanais feitas com toco de bambu. Na Santa Elina, 80 posseiros trabalhavam na segurança. No dia do massacre, apenas vinte vigilantes decidiram pegar em armas para resistir à Polícia Militar. Os outros se muniram de paus e pedras. Todos foram para a beira do córrego que circunda a área, seguidos pelas crianças que se divertiam, imitando os pais. O primeiro ataque das forças governamentais foi feito com bombas de efeito moral. Os sem-terra ligaram as motosserras para assustar as forças da repressão. Os holofotes da polícia iluminavam a fumaça que dançava no movimento da luz. De repente, tiros.
Maria dos Santos Silva estava preparando arroz na cozinha do acampamento, junto com os filhos Romerito, de oito anos e Vanessa, de sete. “Ô, mãe! O que é isto”, gritou a menina. “Quieta, respondeu a mãe. Naquele momento, muitas mulheres invadiram a cozinha com as crianças e, gritando, deitaram-se no chão”.
Maria pegou os filhos pela mão e saiu correndo em direção ao córrego. Estavam quase saindo do acampamento quando Vanessa gritou: “Ai mãe!” O sangue saiu pela barriga da menina. A mulher tomou-a nos braços, entrou no córrego. Quando chegou à outra margem, a menina esticou as pernas e morreu. Maria correu mais quatro quilômetros com a filha morta nos braços.
Do lado dos policiais também havia mortos. O tenente Rubens Fidélis Miranda, com um tiro na testa e outro nas costas e Ronaldo de Souza, com um tiro no pescoço. Os policiais resolveram vingar-se. Reuniram o batalhão de reserva com 35 PMs, que esperava a um quilômetro da Fazenda, e passaram a atear fogo nos barracos, atirando em tudo o que se movia. Onze soldados foram baleados contra dezenas de posseiros. Quando os policiais ganharam o controle da situação, começaram as execuções.
Nelci Ferreira, 23 anos, pulou da cama junto com a mulher, Ana Paula Alves, de 15 anos, na hora do tiroteio. Estavam casados há seis meses, desde que Ana fugira de casa para ficar com o namorado. Esperavam um lote na Santa Elina para começar a vida. Ao sair do barraco, ficaram tontos com o gás. Colocaram lenço com vinagre no rosto e correram para o córrego. Um posseiro caiu baleado e Nelci abaixou-se para ajudá-lo. Foi atingido por dois tiros na cabeça, disparados de cima para baixo. Um posseiro ajudou Ana a levar o marido para a farmácia do acampamento. Lá estavam muitos feridos. Os PMs entraram e atiraram em todos os frascos de soro e demais medicamentos. Fizeram os feridos deitarem-se no chão, chutavam os que gemiam e atiraram em Odilon Feliciano à queima-roupa. Aos gritos, os policiais perguntavam onde estava o Deus dos sem-terra e o PT, que não apareciam ali para ajudar.
Odilon não queria terra. Estava somente acompanhando o pai, Sr. Agostinho, que pretendia obter um lote. Queria ser caminhoneiro e viajar por todo o Brasil. Nelci e Odilon foram colocados no primeiro caminhão que transportou os feridos. Pedia água e se debatia muito. Ambos morreram antes de chegar ao hospital.
No acampamento, um grupo de policiais tentava capturar os posseiros que integravam a segurança. Eles estavam num barraco, construído num pequeno morro perto de uma figueira. Como os policiais não conseguiam tomar o lugar de assalto, constituíram uma barreira com mulheres que lhes serviram de escudo. Conseguiram seu intento. Os posseiros pararam de atirar. Mesmo quem se entregou foi morto. Destes, os laudos de necropsia confirmam as mortes por execução de José Marcondes, recolhido por um rapaz do movimento de nome Paulo Silva. Este rapaz impressionou-se muito com a massa encefálica exposta, tendo sido obrigado pelo policial “a comer um pedaço de miolo, para deixar de Ter medo de morto”.Também o laudo de Ercílio Campos, e de mais dez mortos, indicam execução. Nove desaparecidos, 125 feridos, 355 presos. Cento e vinte posseiros foram interrogados, 74 indiciados por desobediência e resistência.
Foram os proprietários Hélio Pereira de Moraes, da Santa Elina e seu vizinho Antenor Duarte que organizaram a desocupação. Conseguiram um documento do Juiz de Colorado D’Oeste exigindo que a PM expulsasse os invasores e, para viabilizar a ação, providenciaram o pagamento de R$ 5.200,00 para a empresa Eucatur que transportou os policiais.
Após os conflitos, inicia-se uma longa e morosa jornada para evitar que os responsáveis sejam levados a julgamento e, quando isso acontece, a farsa tem início. Na maioria dos casos, não há condenação. Os júris são constituídos por aliados dos criminosos ou por pessoas ameaçadas e que temem as represálias. No caso de Eldorado de Carajás, Pantoja e seus parceiros já foram absolvidos em primeira instância por um julgamento que está sendo contestado pelo Ministério Público, uma vez que o promotor foi surpreendido por fatos que sequer constavam dos autos. Nos demais não houve qualquer punição aos que exerceram abuso de poder e cometeram atrocidades, já que foram acobertados pela violência institucionalizada. Desse modo, torna-se necessário refletir sobre o processo legitimador deste esgarçamento do tecido social e suas conseqüências para a construção da democracia.
SINHOZINHOS MODERNOS
Os episódios acima relatados fazem parte de um Brasil que se atualiza sem alterar as estruturas de dominação, que promove a modernização sem mudança, como bem estudou Peter Eisemberg[3]. Persiste o processo de concentração de terras, renda e poder, envolvendo agora burocracias, chefes políticos regionais e nacionais, empresários, forças armadas, meios de comunicação, mantendo fechados e coesos os núcleos de decisão, próprios do poder oligárquico. Interessante notar que desde a Antigüidade a noção de oligarquia já continha um sentido eticamente negativo, ou seja, “já não pegava bem”. No limiar do século XXI, oligarquia não designa tanto esta ou aquela instituição, não indica uma forma de governo, mas chama a atenção para o poder supremo nas mãos de um grupo restrito de pessoas.[4]
São nove famílias que dominam o sistema de comunicação eletrônico no país, monopolizando as informações e se perpetuando no poder. Entre eles podemos mencionar os Franco, os Rosado, os Alves, os Andrada, os Coelho. Existem ainda outros donos do poder que passaram a posições de mando mais recentemente, ou seja, após o golpe de 1930, como os Konder ou os Bornhausen, descendentes do coronel José Henrique Flores, que governou Itajaí por 119 anos. Ao lado destes, os Maciel aparecem sem um dos instrumentos fundamentais utilizados pelas demais famílias para dominar a política, ou seja, uma rede de emissoras de rádio e de televisão.
O caso de José Sarney é exemplar: senador pelo Amapá (PMDB), presidente do Congresso Nacional, Presidente da República, ex-governador do Maranhão, ex-senador pelo Maranhão por dois mandatos, ex-deputado federal por dois mandatos. Seus dois filhos seguem a mesma trajetória. Sarney possui a TV Mirante (Globo), duas emissoras de rádio em nome de seus filhos, as TV’s Itapicuru e Imperatriz (Globo) e três emissoras de rádio em nome de terceiros que funcionam no mesmo endereço da TV Mirante, além do jornal O Estado do Maranhão.
Nesse mesmo grupo, os Magalhães da Bahia iniciaram a trajetória mais recentemente. Eleito deputado constituinte uma única vez, em 1934, Magalhães Neto foi seguido por Ângelo, deputado federal com quatro mandatos, por seu filho Paulo Sérgio, deputado estadual com dois mandatos, e finalmente por ACM, três vezes governador, deputado federal com três legislaturas, ex-presidente da Eletrobrás e Presidente do Senado. Seu poder eletrônico comporta seis emissoras de TV na Bahia filiadas à Globo e ao jornal Correio da Bahia.
Desse modo, pode-se perceber que a estrutura de mando ganhou longevidade e dimensões de política de massa, articulando-se aos mecanismos de controle de setores econômicos diretos por rede de relações de favor ou interpessoais. A estratégia desses políticos está na base dos mecanismos tecidos no século XIX, especialmente articulados ao aparato de controle local por meio da conexão entre poder local, articulado nos municípios, com domínio do sistema repressivo, seja por meio de comandos na Guarda Nacional ou mesmo da força pública e do periodismo, já que todos foram proprietários de jornais. O estudo de Eisemberg sobre o município de Escada, em Pernambuco, indicou com clareza como a consciência das elites contra o populacho foi central na violenta repressão sobre a Praieira, em 1848. Desde esse dramático episódio da luta das populações rurais, o fenômeno da exclusão e do silêncio tem sido fundamental na manutenção dos aparatos de força utilizados contra aqueles que se arvoram a disputar espaço territorial e inclusão social.
Tanto no Pará como em Rondônia, verifica-se um amplo processo de alteração social a partir dos projetos estratégicos dos militares. Inclusão de interesses de madeireiras, mineradoras e garimpos, legais e clandestinos, foram sendo estimulados por aporte de incentivos fiscais, promovendo alteração nas antigas áreas de posses ocupadas por famílias de lavradores que sobreviviam das atividades do pequeno roçado e da coleta. A chegada de estranhos promoveu confrontos entre estes e os peões ou garimpeiros dos barracões, introduzindo a figura do moderno preador de mão-de-obra, o Gato[5]. Além disso, mediada pela criação das superintendências regionais, aprovou-se um significativo conjunto de projetos agropecuários na Amazônia Legal, foram estabelecidos mecanismos claros de repasses de fundos públicos a todos os interesses que ali se estabelecessem no controle da região.[6] Também é verdadeiro que a isenção fiscal foi um mecanismo amplamente utilizado para financiar a instalação de investimentos do grande capital nacional ou internacional na região.
O Plano de Valorização Econômica da Amazônia Legal previa em 1966, que fossem realizadas pesquisas e levantamento do potencial econômico da região para uma ação planejada de longo prazo, a definição de espaços econômicos suscetíveis de desenvolvimento planejado, a fixação de pólos de crescimento, concentração de recursos em áreas selecionadas, formação de grupos populacionais estáveis, tendentes a um processo de auto-sustentação, estímulo à adoção de uma política imigratória para a região, com aproveitamento dos excedentes populacionais internos e contingentes selecionados externos, estímulos à exploração das espécies nativas e da economia extrativista, incentivo à agricultura, pecuária e piscicultura. Todas estas medidas seriam viabilizadas com recursos do governo federal por estímulos fiscais ou operações de crédito, visando atrair os interesses privados nacionais ou estrangeiros.
O processo de valorização seria realizado pela SUDAM, Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, que funcionaria como um organismo de controle dos projetos a serem credenciados para a obtenção de financiamentos públicos. Esse controle fez com que seu poder de barganha crescesse muito e direto. A partir da constituição do FIDAM (Fundo de Investimentos no Desenvolvimento Amazônico), constituído por 1% da Renda tributária da União, a emissão de títulos Obrigações da Amazônia e a receita líquida obtida por suas operações propiciaram dotações específicas por projetos, por meio de depósitos dedutíveis do Imposto de Renda devido por empresas, na forma estabelecida pela Legislação de Incentivos Fiscais, e dos recursos do Fundo de Fomento à produção, criado em 1950 pelo artigo 7o da lei n. 1184 de 30 de agosto, modificada pelo artigo 37o da lei n. 4829 de 05/11/1965.
Todos os financiamentos aplicados pelo FIDAM foram destinados à iniciativa privada por meio do uso do fundo público, como antecipação ao capital. A existência deste “antivalor”[7] é o elemento mais significativo na definição dos interesses de classe que se articulam no processo de exploração regional e do processo predatório ali constituído a partir da extração dos minérios e da política do desmatamento que uniu os povos da floresta na defesa dos direitos fundamentais do trabalho e do meio ambiente.
Os processos enfrentados pelos povos da floresta foram extremamente variados. Pode-se afirmar que, ao longo das décadas de 1970/80, o fenômeno das migrações rurais/urbanas foi intenso. A presença dos estranhos forçou o “Vôo das Andorinhas”.[8] As motosserras realizavam, com tecnologia, a derrubada das árvores centenárias, cuja madeira de lei rendia dividendos nunca praticados pelos seringueiros, castanheiros e índios. Muitos passaram a colaborar com os novos senhores do lugar ou de seus prepostos. Com isso, a própria sobrevida foi alterada de modo brutal. A contaminação dos rios, o deslocamento das toras, o barulho das motosserras espantava os animais da caça, impediam a desova dos peixes e traziam muitas doenças para as quais os nativos não estavam protegidos.
Além disso, as migrações internas provocaram inúmeros conflitos entre garimpeiros, peões e posseiros, que viveram confrontos cada vez mais difíceis de serem coordenados. Este estado de coisas fez com que alguns mediadores dos posseiros fossem estimulados a participar do processo de reordenação social no campo. Enquanto os trabalhadores promoviam suas organizações, os sinhozinhos modernos criavam a UDR (União Democrática Ruralista) para impedir que a concentração de terras e de poder fosse ameaçada. Desse modo, por meio de rodeios, leilões de gado e pela contratação de jagunços armados, ou do favorecimento de alguns subornos aos policiais militares, estava aberto um novo modo de enfrentamento da luta pela terra. Renasciam as práticas do cangaço. Num primeiro momento, a estratégia era a da ameaça velada e dos assassinatos na calada da noite. Assim foram mortos padres, sindicalistas, lideranças de posseiros, freiras, advogados e professores. Aos poucos, o processo foi se explicitando cada vez mais com a impunidade e acabou aparecendo ao vivo e em cores na TV.
OPINIÕES DIVERGENTES
A situação atual originou-se da sociedade colonial e da escravidão, uma vez que as terras eram doadas em sesmarias aos que fossem limpos de mãos e sangue e tivessem escravos para realizar os trabalhos manuais. Mas é importante, neste processo, vislumbrar que a primeira concessão de capital adiantada foi oferecida pelo Estado aos senhores de terras. Desde a lei de Terras de 1850, foi possível constituir uma classe de proprietários sem alterar as estruturas anteriores, tanto em nível cultural, como nos elementos constitutivos do capital orgânico do proprietário. O fato de todos os homens bons, que obtiveram ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX concessões de terras em sesmarias, terem sido transformados em proprietários com a Lei de 1850 e recebido do governo a terra com valor e preço, fez com que a exclusão fosse ainda mais perversa. Por serem senhores de escravos, receberam terras e, por terem interesses em sua manutenção e impedirem os imigrantes de se apropriarem delas, foram elevados à condição de capitalistas.
Deste modo, a conciliação entre os antigos senhores e os novos proprietários estabeleceu as bases de acordo entre as velhas e novas elites e estendeu a mentalidade escravista ao conjunto dos homens livres não proprietários.[9] O aprofundamento da desigualdade fez com que fosse criada a oposição a qualquer iniciativa pela reforma agrária e o latifúndio se estabeleceu como modelo para todo o território brasileiro. Desse modo, mesmo entre os intelectuais, as divergências quanto ao parcelamento das terras ainda é muito forte. Em primeiro lugar, as propostas de parcelamento foram ideologizadas, consideradas propostas de esquerdistas e vinculadas por seus opositores às estratégias revolucionárias. Neste bloco, poderemos destacar a concepção de William Nicolls, contrária à distribuição de terras, uma vez que interessava estimular os grandes produtores, somente eles capazes de implantar inovações agrícolas[10]. Em seu artigo “A economia agrícola brasileira: desempenho e política recente”, publicada na Revista Tecnologia e Desenvolvimento Agrícola, resultado de uma pesquisa em centenas de estabelecimentos agrícolas em seis Estados da federação, Nicolls afirmou que 38,6% das propriedades do centro-sul e 12,5% das do nordeste possuíam renda negativa. Deste modo, melhor seria estimular o desenvolvimento agrícola da grande propriedade e formar um forte proletariado rural. Por seu turno, Ruy Müller Paiva concorda com Nicolls, pois, ao estudar os baixos níveis de renda e salário, destaca que a presença de inúmeros empresários agrícolas apresenta resultados extremamente baixos.
José Graziano da Silva e Rodolfo Hofmam[11] consideram que a política de distribuição de terras deveria ser estruturada com vistas a diminuir os níveis de distribuição e concentração de rendas. Deste modo, a política distributivista deveria ser também articulada a uma política agrária que permitisse a incorporação dos novos produtores ao mercado, de forma que o próprio abastecimento agrícola fosse mais democrático. Francisco Graziano Neto[12], ao estudar os relatórios de pesquisa do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo concluiu que a agricultura capitalista de São Paulo convive com o elevado custo da tecnologia e dos fertilizantes, resultando eficácia para o padrão de acumulação, sendo mais viável o uso de tecnologias mais simples como arados manuais e mesmo insumos animais. Dessa maneira, conclui que a substituição forçada da mão-de-obra ocupada nas atividades agrícolas pela tecnologia mecânica ocasiona o êxodo rural sem condições de aproveitamento na cidade, dado que a oferta de empregos naquelas regiões também é restrita. Nesse sentido, propõe o desenvolvimento de um padrão de desenvolvimento agrícola que articule o processo de preservação ambiental e incorpore os trabalhadores em novas modalidades de desenvolvimento agrícola, que não fosse gerido pela lógica da acumulação.
Finalmente, José Gomes da Silva[13] procurava articular sua proposta ao conceito da Agência para O Desenvolvimento Internacional, que propôs a redistribuição do direito de propriedade sobre a terra, concessão de segurança, longos e largos prazos e baixos preços para as terras ocupadas de forma precária. Além disso, destacava a necessidade de investimento em infra-estrutura ao defender a titulação das áreas de posse pelo usucapião e a concessão de lotes em áreas improdutivas e devolutas, cujos objetivos deveriam incorporar assalariados, parceiros, colonos, moradores, ocupantes, arrendatários, meeiros, etc.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) incorporou alguns dos itens do debate e defendeu a redistribuição de terras com a conseqüente distribuição de rendas, transformação da estrutura agrária injusta com participação e decisão do trabalhador nesse processo.[14] A Comissão Pastoral da Terra, criada pela CNBB, passou a garantir apoio jurídico e informações para os sem-terra, que passaram a se organizar no início dos anos 1980. As bases de sua organização foram as Dioceses de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e Chapecó, em Santa Catarina. Inicia-se assim a formação do Movimento dos Sem-Terra, que constituiu uma coordenação nacional e se articulou à União dos Povos da Floresta e ao Movimento dos Atingidos por Barragens.
A CNBB, num documento da Comissão Pastoral condenou os latifúndios, a concentração de rendas e a manipulação da indústria da seca do nordeste[15]. Frente a esse quadro, o governo decidiu distribuir algumas terras para manter a concentração fundiária. Os Projetos de Colonização criados em 1972 foram assim distribuídos nas regiões de conflito aqui relatados:
PROJETOS |
LOCALIZAÇÃO |
PROJETADO |
EXECUTADO |
A EXECUTAR |
Altamira |
Pará |
— |
2.550 |
450 |
Marabá |
Pará |
1.000 |
600 |
400 |
Itaituba |
Pará |
500 |
500 |
— |
Sidney Girão |
Rondônia |
500 |
210 |
290 |
Jiparaná |
Rondônia |
500 |
67 |
433 |
Ouro Preto |
Rondônia |
1.079 |
1.079 |
— |
Fonte: INCRA – Colonização da Amazônia, PIN, Brasília, 1972. |
Esses projetos deveriam evoluir para agrovilas pela incorporação de trabalhadores rurais de diferentes regiões brasileiras. Esse processo não se realizou, permanecendo durante longo tempo como favelamento rural e aumentando os problemas dos produtores deslocados de áreas agrícolas temperadas para a floresta tropical sem qualquer infra-estrutura. Foi o que ocorreu com a primeira leva de migrantes gaúchos, expulsos pelo boom da soja, um dos projetos concentracionistas do regime militar, ou ainda com os expulsos da terra pelo processo de construção das barragens do complexo Itaipu.
Foi com o apoio da Comissão Pastoral da Terra que, nos primeiros anos da década de 1980, iniciou-se um amplo debate no sentido de formular um Plano Nacional de Reforma Agrária. Apesar das divergências de entendimento do tema, o documento foi formulado e modificado, aparentemente produzindo um consenso. Ele deveria servir de base aos constituintes, mas, devido à ação da UDR, foi eleita uma bancada ruralista composta por 150 parlamentares que derrotou o consenso estabelecido.
O plano nacional de reforma agrária foi derrotado e a constituição de 1988 eliminou, inclusive, o sentido social definido no Estatuto da Terra de 1964.
Com essa derrota, os movimentos decidiram ampliar os processos de ocupação ou de invasão. Especialmente porque a lei regula apenas o vivido e não antecipa o futuro. A única hipótese de existência de reforma agrária só se efetivará depois de amplo processo de ocupação e ampliação do conflito e das necessidades de sua regulação. Foi esse o entendimento do 5º Congresso do MST.
VIOLÊNCIA E BARBÁRIE
Desse modo, os conflitos cresceram ao longo das décadas de 1980/90. O líder Chico Mendes, organizador do sindicato rural de Xapuri no Acre, foi ameaçado de morte por organizar um processo de resistência denominado pelo movimento de “empate de derrubada”. Por meio da ação coordenada de homens, mulheres e crianças, os seringueiros impediam que as motosserras derrubassem as seringueiras. As notícias desse movimento atingiram a imprensa internacional e Mendes ganhou da ONU o Prêmio Global 500. Os ambientalistas passaram a observar e discutir o desenvolvimento da Amazônia. Muitos interesses passaram a ser controlados e uma legislação especial teve de ser formulada como exigência para a liberação dos financiamentos externos.
Quanto maior a pressão externa, maior o número dos marcados para morrer. Chico Mendes foi assassinado na presença de policiais destacados para sua proteção. Os assassinos foram presos e os mandantes julgados e condenados. Todos fugiram da prisão e não cumpriram suas sentenças judiciais. Muitas foram as perdas do movimento pela terra. Destes, destacamos Maria da Penha, líder da Paraíba, Padre Josimo do Maranhão, os irmãos Canuto, Margarida Maria Alves, entre tantos outros. Os assassinos e mandantes não temem a Justiça.
Os episódios de Eldorado dos Carajás e Corumbiara mostram a ampliação da violência e o tamanho dos desmandos e da impunidade. A banalização da tragédia tem se estabelecido com apoio da mídia eletrônica. Coloca-se em questão os sentidos da democracia na era da globalização.
O quadro atual, afirma Marilena Chauí, indica o aumento da série de problemas oriundos do capitalismo contemporâneo. Nesta fase neoliberal pode-se perceber que:
1. O desemprego tornou-se estrutural, uma vez que não há nesta etapa nenhuma operação de inclusão de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo, mas a exclusão. O Presidente da República, em discurso pronunciado em 1996, considerou que 1/3 da população brasileira estará no mercado no final do ano 2000;
2. O centro nervoso do sistema – o monetarismo e o capital financeiro – promovem ampla desvalorização do valor do trabalho e da produção;
3. O setor de serviços cresceu de modo estrutural, deixando de ser suplementar e promovendo a era da terceirização pela desagregação da unidade da fábrica como lugar constitutivo dos elos de solidariedade, isolando o trabalhador e tornando-o refém do individualismo, desorganizando seu potencial de combate;
4. A Ciência e a Tecnologia tornaram-se forças produtivas, deixando de ser meros suportes do capital para se converter em agente de sua acumulação;
5. Rejeição do Estado, não apenas no mercado, mas como formulador de políticas sociais, promovendo as privatizações de empresas e de serviços públicos. Deste modo, a idéia dos direitos sociais como pressupostos e garantia dos direitos civis e políticos tende a desaparecer.
6. A trans-nacionalização da economia torna a figura do Estado um enclave territorial para o capital. O imperialismo deixa de ser reconhecido como um fenômeno de controle e a gestão econômica mundial realiza-se no FMI e no Banco Mundial;
7. Desaparece a divisão do mundo entre industrializados e não industrializados, uma vez que os fenômenos de riquezas e miséria estão em bolsões tanto nos países do primeiro como do terceiro mundo.[16]
Assim, a desintegração vertical da produção, tecnologias eletrônicas, diminuição dos estoques, velocidade na qualificação e desqualificação da mão-de-obra atingem de modo especial o conjunto da população brasileira, que não pode mais permanecer como exército de reserva nos centros urbanos. O êxodo deixa de ser uma forma de encantamento do mundo. A terra ainda oferece guarida aos seus filhos. Nesse sentido, a luta por sua posse cresce na mesma proporção que a política de desindustrialização e o desemprego. O Movimento dos Sem-Terra amplia a racionalidade das lutas locais e de autodefesa e oferece dimensão nacional aos dilemas da exclusão.
Quando dos massacres de Corumbiara e Eldorados dos Carajás, a comoção nacional foi intensa e a própria Globo tratou do problema dos sem-terra na novela O Rei do Gado. Os índices de aprovação das lutas do MST cresceram e atingiram quase 85% dos índices de popularidade. Os inquéritos foram formados, os processos estão em andamento, mas os problemas prosseguem insolúveis e se deslocam em disputas nos vários Estados e regiões do país.
Neste exato momento, FHC elegeu o MST como seu inimigo político e a Globo articula as imagens com o objetivo de criminalizar o movimento. Ao construir sua alteridade promovendo o silêncio dos movimentos sociais, o governo devolve aos antigos “donos do poder” os mecanismos constituídos ao longo desses séculos cuja barbárie pode ser verificada nos relatos dos sobreviventes das chacinas.
Estudar estes fenômenos e propor alternativas de desenvolvimento sustentado pode ser uma forma de colocar a eloqüência e a fala àqueles que sistematicamente têm sido silenciados.
Iokoi, Zilda Márcia Gricoli “Violência e Barbárie na Era da Globalização” in Nodari, Eunice e Pedro, Joana Maria (org.). História: Fronteiras. (São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP: ANPUH) 1999. p. 591-607.
[1] A gravação em vídeo foi feita por Oswaldo Araújo, cinegrafista do SBT que forneceu imagens para inúmeros países estrangeiros, para o programa Jô Soares Onze e Meia e para o programa de Marília Gabriela. Juntamente com a reportagem da Revista Isto É nº 1386 de 24/4/96, constitui fonte deste artigo.
[2] Isto É, 24/4/96 p. 23.
[3] Eisemberg, Peter. Modernização Sem Mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. O autor estuda o processo de modernização em Pernambuco no século XIX e por meio de dados econômicos e produtivos demonstra como a passagem do engenho de fogo para o engenho central e, finalmente, a formação das usinas se fez sem alterar as relações sociais e políticas.
[4] Fernandes, Bob. “Os Donos do Poder” in Carta Capital, n. 13, ago. 1995.
[5] Esterci, Neide. Conflito no Araguais; Peões e Posseiros Contra a Grande Empresa. Petrópolis, Vozes, 1987.
[6] Dos 326 projetos aprovados pela SUDAM até 1980, 299 foram para Goiás, Mato Grosso e Pará, os restantes 8,28% foram distribuídos entre Acre, Amapá, Amazônia, parte do Maranhão, Rondônia e Roraima. Ver DUARTE, Elio Garcia.Conflitos pela terra no Acre.Rio Branco, Casa da Amazônia, 1987.
[7] Oliveira, Francisco. “O surgimento do Antivalor” in Estudos CERAP. N. 22, São Paulo, out. 1995.
[8] Martins, José de Souza. A Chegada do Estranho. Petrópolis, Vozes, 1996.
[9] Franco, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.
[10] Nicolls, W e Paiva, Ruy M. Ninety-nine fazendas: the structure and productivity of Brazilian Agriculture. New York, 1965.
[11] Hofman, R e Silva, J. G. da. “As Estruturas Agrárias Brasileiras” in Tecnologia e Desenvolvimento Agrícola. Rio de Janeiro, IPEA, 1965.
[12] Graziano Neto, F. “Capitalismo e tecnologia no Campo: Notas Preliminares” in Encontros com a Civilização Brasileira n. 10, Rio de Janeiro, 1979.
[13] Silva, José Gomes da. A Reforma Agrária no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1971.
[14] Anais do 3o Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais. CONTAG, Brasília, 21 a 25 de maio de 1979.
[15] Relatório da Comissão Pastoral da Terra. In. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04/03/1979.
[16] Chauí, Marilena “Ideologia Neoliberal e Universidade” in Oliveira, Francisco e Paoli, M. Célia. Os Sentidos da Democracia: Políticos do Dissenso e Hegemonia Global. Petrópolis, Vozes, 1999.
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